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Posted: 16 Mar @ 5:08am

“Quem sou eu nesse mundo? Ah, esse é o grande enigma” Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol

Eu estava sentado num banco de madeira, com minha mãe do meu lado. Tinha mais um monte de fileiras de bancos iguais pra frente do nosso, e alguns bancos atrás, e uma outra fila inteira do lado do corredor. Algumas das pessoas que ocupavam esses bancos eu conhecia de nome, algumas de vista, e sempre aparecia uma cara nova. Era domingo de manhã e o louvor estava acabando. O culto evangélico seguia então para a pregação do pastor, e eu senti vontade de dizer “mãe, o pastor César já falou isso antes”… mas eu preferi ficar calado. Percebi, no entanto, que não era a primeira vez que eu ouvia aquela passagem: Lucas 15, de 11 a 32.

Eu cresci frequentando uma igreja cristã. Muito antes de sonhar com Radagon, Godfrey e a personagem Tarnished, ou passar minhas pausas do trabalho remoto com eles, eu passava as manhãs e noites de domingo num templo evangélico.

Depois de dois mil anos a bíblia sagrada continua sendo a mesma. Mesmo que existam várias versões, e que as traduções continuem sendo atualizadas, se você frequenta uma igreja cristã em algum momento uma dessas passagens estudadas no sermão vão se repetir. Não tem DLC, não tem season pass. Eu já perdi a conta de quantas vezes já ouvi a parábola do filho pródigo.

Se você faz parte do grupo que não passou pela exposição a essas escrituras, vamos lá: o pastor explicou naquele domingo que, de acordo com o evangelho segundo Lucas, Jesus estava em certo momento rodeado de pecadores e publicanos, pessoas comuns a quem pregava. Para os que compartilhavam de sua fé, Jesus era o grande profeta da época e seria reconhecido como o “filho” da trindade Pai, Filho e Espírito Santo, enviado ao mundo através de imaculada concepção para livrar os homens do pecado. Os burocratas e conservadores da época, chamados na tradução da Sociedade Bíblica Brasileira de fariseus e mestres da lei, também estavam ali, em volta dos populares, nesse caso com a intenção de criticar o profeta. Jesus então aproveita essa audiência para contar a parábola do filho pródigo. Nela, ele fala de um homem aparentemente rico, pai de dois filhos adultos. Um dia, um desses filhos pede sua parte dos bens ao pai, numa partilha adiantada. O pai atende a vontade do jovem, que então sai pelo mundo curtindo os prazeres da vida. Depois de queimar a fatia da riqueza que recebeu, o filho pródigo decide voltar arrependido para casa e implorar o perdão. O pai o recebe com alegria, para a ira do irmão mais velho que se manteve ao lado do pai durante todo aquele tempo, trabalhando duro, sem receber qualquer fanfarra por isso.

Essa parábola é uma ferramenta da igreja e dos pais para expor às crianças os perigos da liberdade, e os benefícios que talvez a criança não enxergue em se manter submissa. Bem antes de eu nascer, Mick Jagger não era capaz de conseguir satisfação, e se depender da parábola do filho pródigo não vale nem a pena procurar. Esse trecho também é um incentivo à pregação: a moral bíblica quer mostrar que, mesmo quem tem a companhia de um justo, como no caso o filho mais velho, se alegra mais com a salvação de um pecador como o caçula.

Mas a parábola do filho pródigo também pode ser vista como uma ferramenta de controle, uma lição de que fugir da relação desfavorável de poder eventualmente resulta em um retorno envergonhado, por mais tóxica que essa motivação seja.

Um dos ingredientes que faz a parábola do filho pródigo funcionar na educação religiosa é a motivação. Por que uma pessoa jovem, agora livre da autoridade dos pais e da igreja, voltaria à casa da qual fez tanto esforço pra sair. A resposta é que, nessa parábola, a vida de liberdade que a pessoa encontra lá fora não é tudo que anunciaram: solidão, pobreza, sofrimento, esgotamento. Uma apreciação tardia pelo que o sistema oferecia. E é nessa motivação que esses pais e líderes religiosos apostam. Existe até um componente econômico na parábola, porque o filho pródigo é herdeiro, e mesmo tendo curtido a vida e queimado capital, volta para condições melhores que os empregados de seu pai.

Em Elden Ring, RPG de ação lançado em fevereiro de 2022 pela From Software, a motivação de seu protagonista é uma incógnita. Quem joga Elden Ring se encontra sobre controle do Maculade, a personagem Tarnished, membro sem expressão de um grupo expulso das terras intermediárias pela rainha Marika. A mácula veio quando esse grupo caiu em desgraça com a Erdtree, árvore santa ao centro da capital. Depois do rompimento do Anel Prístino, a luz divina da árvore acenou de novo aos maculados com sua graça perdida.

Mas por que voltar a esse mundo, que vive hoje seu pior momento? As terras intermediárias de onde os maculados foram expulsos não é a casa de papai da parábola, com cama quente, abrigo, amor e riqueza. A proposta de retorno aqui é cheia de luta e vazia em esperanças. Toda risco e nada recompensa. A vida que Tarnished deixou pra trás no exílio nem é levada em conta. Mas a gente volta mesmo assim.

Um

Existe um vídeo de 2019 do Jogabilidade que eu amo, que se chama “SOULS” É UM GÊNERO? Nele o Sushi e o Rafa buscam responder essa pergunta discutindo as características em comum dos jogos contemporâneos da From Software, em que gênero esses jogos se encaixam, e a influência totalizante que esses jogos tiveram em outros estúdios e franquias desde que Demons Souls saiu. Souls é um gênero? Na prática, a essa altura, é batalha perdida lutar contra o termo Souls Like ao falar de jogos como Elden Ring. Existem problemas e limitações que surgem quando a gente associa um gênero emergente ao nome de uma obra, mas já está claro que o público vai ultra simplificar as coisas debaixo do rótulo Souls like mesmo. Em resumo, Souls Like são jogos que têm características chave em comum com Demons Souls e Dark Souls: elementos de RPG, combate em tempo real preciso e rico em ação, curas limitadas no curto prazo porém infinitamente recarregáveis nos checkpoints. Os mesmos pontos de salvamento revivem todos os inimigos comuns. Existe chance de perder todas as suas unidades monetárias quando morre, e por falar em morte, mortes frequentes são associadas a esse gênero, algumas vezes como distintivo de honra dos fãs mais chatos. A verdade é que as mortes são uma etapa de descoberta, experimentação e aprendizado. Os jogos da From oferecem mecânicas menos explícitas para deixar o jogo mais fácil. Falando em jogo mais fácil, esses jogos não tem opção de dificuldade no menu, e se aprofundar nessa discussão reduz a vontade de viver.

Citar Dark Souls é lugar comum em comentários de videogames e eu não sou inocente. Felizmente estamos aqui falando de uma sequência espiritual, do mesmo estúdio que ainda emprega muitas das mesmas pessoas. Demons Souls foi o primeiro jogo liderado por Hidetaka Miyazaki, diretor de Elden Ring, e que com seu sucesso cult abriu caminho para a Dark Souls, Dark Souls 2, 3, Bloodborne e Sekiro. Outra menção que se torna repetitiva POR AÍ, mas é útil AQUI, é Breath Of The Wild, já que os Zelda antigos são uma das inspirações da série Souls, e o mundo aberto deu uma nova dimensão a essas entradas recentes de ambas séries.

Eu não sei se o mundo aberto é maior do que o de outros jogos, ou só parece maior. Talvez seja só impressão, porque eu estou acostumado com mundos abertos que se preocupam em ser amplos apesar de rasos, enquanto Elden Ring é profundo. Eu PODERIA pegar essa tangente para falar da história dos jogos de mundo aberto, forçar a barra e dizer que Go foi o ÚNICO jogo de mundo aberto lançado ANTES do ano zero do Nosso Senhor, mas a minha observação anterior se limita a tudo aquilo que veio depois, incluindo o GTA 3, e que foi martelado até o chão por Assassins Creed e Far Cry.

Review completa: https://open.spotify.com/episode/6CEZZNxs9sXQbsO2oUknjK?si=EG87Xl0OTe-5GCZO8OZgBA
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