Em meio ao vazio teu Cérebro Reptiliano Ancestral te induz ao caloroso conforto da inexistência e lhe seduz ao esquecimento de tudo para aliviar a dor, tanto de sua carne-humana, tanto de suas dolorosas memórias. Seu Sistema Límbico lhe envia os primeiros sinais sensoriais do mundo lá fora que lhe espera. Sua boca ainda fede a licor da forma mais desprezível possível e teu crânio vibra com um estrondaste barulho lá fora.

Fiat lux!

O que antes era um vazio sensorial reconfortante como um útero se torna vívido e patético.
Com as pernas em cócoras e face esmagada sobre o chão tu acordas, ainda interpretando o mundo a sua volta.
A cama está destruída, a janela quebrada, fitas magnéticas soltas do reprodutor e uma gravata risória pendurada no ventilador não para de girar.
Na sua mão uma garrafa de vinho barato, e no espelho uma figura não familiar com um sorriso estúpido; esse é você.

Sem um puto no bolso, sem memória alguma sobre você ou o mundo a sua volta e uma roupa “disco” velha tu tens um mundo e si mesmo para conhecer e nada a perder além de seus grilhões.

Bem-vindo a Elysium

---

O jogo é um cRPG tradicional em questão mecânica, nenhum grande desafio de agilidade ou memória muscular te espera, você não deve estar lá pra isso, tudo gira em torno da rolagem dos dados de seus atributos e perícias. Esses dados são modificados, claro, pelos seus atributos iniciais e onde você investe seus pontos de XP durante o jogo, seus itens (vestes) também podem te dar e tirar modificadores. Tem também os pensamentos que podem ser internalizados, funciona como um sistema de pesquisa, você os coloca em uma fila de gerenciamento e eles se produzem ao decorrer de um tempo pré-estabelecido. Esses pensamentos também podem dar modificadores de dado ou bônus passivo em ganho de XP ou coleta e etc...

Falando em tempo; ele não roda sozinho e sim avança baseado no quanto tu conversas ou lê pelo jogo e se isso parecer um problema fica tranquilo que tu tens muito texto para administrar, são 1.2 milhões de palavras no jogo, é mais palavra do que tem em qualquer língua, mais que o dobro do que temos em português por exemplo, tanto que o jogo com frequência mistura idiomas e expressões dentro da mesma frase.

A movimentação é basicamente point n’ click, o botão esquerdo anda e interage e o direito revela uma visão ressaltada do que lhe cerca.

Não ser um jogo de combate não significa que você não tem vida, o mundo pode e vai te machucar, seja por tropeçar, cair, dar de cara em algo, se chocar contra uma idosa em uma cadeira de rodas enquanto voa de costas com os dedos do meio apontados para o dono do hotel que você tem dormido e manda ele se foder ou até mesmo acaricia uma espinhosa árvore que “trama em silêncio contra a humanidade”

Palavras também machucam aqui, além do HP você vai encontrar um sistema de Moral, passar vergonha, ser humilhado e afins te ferem, assim como ser elogiado ou acertar um palpite pode recuperar ela naturalmente.

Zerar a vida ou moral são resultantes em Game Over então se cuide. Embora seja natural que se termine o jogo sem grandes complicações em relação a isso.

Ah, claro, as drogas. Cigarro, bebida, rebite e outros remédios opioides te dão vantagens temporárias em atributos ao custo de vida ou moral.


Não estamos na terra, estamos em Elysium, um mundo completamente diferente do nosso e simultaneamente tão semelhante. Não só isso, estamos em Ravachol, a antiga capital do mundo em seus tempos monárquicos, berço de uma grandiosa revolução comunista que logo em seguida foi tomada pelos órgãos moralistas liberais a força e transformada em uma periferia do capitalismo.

O fato de ser literalmente todo um novo mundo traz também nova regras, não sociais, mas sim físicas. Não se surpreenda pelas contemplações do absurdo que te cercam, nesse sentido tu se encontra numa ofuscada fronteira entre o absurdo de Kafka e o terror cósmico de Lovecraft, cabe a você o como lidar com esse mundo. Se assustando com o fim inevitável a partir do inexplicável? Talvez, mas apesar dos absurdos que o cercam tu ainda tem um trabalho a fazer e problemas a resolver, mesmo que seus corpo se transformasse em barata tu ainda tem uma lista a terminar.


O distrito de Martinese é onde você explora, não só em um país que hoje é a ruína do que tinha sido uma vitoriosa tomada dos meios de produção você está na área mais pobre dela, a periferia da periferia. O lugar é controlado pelo sindicato local, que é composto pelos trabalhadores do porto de uma corporação multinacional que ali se instaurou. A região é pequena, mas é rica em história, tanto de seus lugares que outrora abrigaram os mais ardentes revolucionários, tanto de seus personagens que hoje tentam apenas sobreviver das sobras do antigo mundo, todos os personagens são intensamente marcados pelo local e o local tem cicatrizes de seus personagens, veias abertas pulsando por algo grandioso e incerto que ninguém sabe o que é.

Algo muito grande está prestes a acontecer a muito tempo e nunca acontece, e cada vez mais as promessas de futuro dadas pelo seu passado parecem mais longes e a esperança foi tomada. Comunistas e anarquistas foram fuzilados, monarquistas ficaram no passado e hoje só se vê fascistas e liberais fazendo promessas vazias para terem seus ganhos próprios.
Seja lá qual era a possibilidade para aquele local, já não mais existem, as possibilidades materiais concretas dali foram sufocadas e afogadas como tudo nesse mundo pois é isso que você faz nesse jogo, você se afoga, pra dentro e pra fora, na metafísica e na materialidade concreta, em direção a tudo e em todos cada vez mais você afoga....

R. S. Thomas a écrit :

"As fúrias estão em casa no espelho; é a morada delas.
Até a água mais límpida, se profunda o bastante, pode afogar.”